O artista Fung Chin Pang, a quem pertence a imagem acima, é um ilustrador de Hong Kong.

O melhor cliente do mundo é o próximo

Uma aventura entre as prostitutas do Rio de Janeiro

Mateus Baldi

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Por Mateus Baldi

esta matéria foi originalmente publicada na revista poleiro.
arte: joão brizzi.

- Quem é o melhor cliente?
- Você é o melhor cliente.
Lúcia McCartney — Rubem Fonseca

I. PUTA E RICA

A casa funciona numa rua perto da Uruguaiana, no Centro do Rio de Janeiro. Não fosse o funk alto e o letreiro verde-neon sobre a entrada, seria mais um sobrado qualquer. Subo as escadas, empurro uma porta dupla estilo saloon de bang-bang e descubro um enorme espaço de piso sujo e ladrilhado onde dançam dezenas de pessoas. Demoro para me acostumar à escuridão e ao cheiro de cerveja e cigarro. Estamos num lugar fechado, mas todo mundo ali fuma. A névoa é parte do clima. As mulheres usam maiôs e biquínis de cores fluorescentes que brilham na luz anoitecida. A maioria esmagadora é de negras. Todas elas estão com clientes. Me atenho a eles: mochila nas costas, camisa polo listrada de tons sóbrios, calça jeans barata e cordão de prata.

No canto esquerdo da soleira há um palco de pole dance. Ao fundo, comandando as caixas de som altíssimas, um sujeito gordo de regata berra no microfone, instigando as mulheres a dançarem mais freneticamente. Rebolando em um dos clientes — um desdentado de barba por fazer — , Marcy leva a mão aos cabelos e põe o indicador na boca.

À direita estão o bar e o caixa — uma mesa de plástico branco onde um sujeito com cigarro atrás da orelha apanha os papeis das garotas e contabiliza as subidas. Peço uma cerveja ao barman e observo Luana se aproximar.

— Oi, gatinho.

Dois beijinhos.

— Tudo bem?
— Tudo. Você vem sempre aqui?

Dou de ombros.

— Quanto é pra subir contigo? — pergunto.
— Cinquenta e cinco, vinte minutos.

Ela sorri, ajeita o vestido branco que marca a bunda imensa, morde o lábio inferior e corre até o caixa. Num recipiente de madeira, dezenas de camisinhas do Governo. Luana apanha uma e me conduz pela mão até o segundo andar. Ao lado da porta, encostado na parede vermelha imunda, um camarada de boné marca o horário e a cabine.

— Na oito, Luana. Vinte minutos marcando agora.

Ela me olha. Seu rosto está banhado por uma luz cor de creme. Percebo as espinhas em sua tez oleosa, o cabelo feito palha, a maquiagem esmaecendo e escamando conforme o suor aumenta na pele.

— Vem, amor.

Na cabine, apertada que só, Luana senta na cama e abre as pernas.
Aperto os olhos e pergunto há quanto tempo ela faz programa.

— Ah, já tem um ano.
— Tu gosta?

Ela dá de ombros.

— Por que você começou?
— Vem cá, teu tempo tá passando, amor.
— Só responde isso. Por que você decidiu virar puta?
— Olha, no início eu trabalhei em casa de massagem onde só ia executivo, sabe? Eu queria ser puta e rica, mas aí veio a crise, a Petrobrás se fodeu e eu só fiquei puta mesmo.

II. TREZENTOS E QUARENTA REAIS

A Whiskeria já foi citada em música do Mr. Catra e é um dos principais pontos da noite carioca. Localizada num edifício perto do CCBB, possui uma entrada adesivada e cheia de seguranças. Foi um deles que me informou o preço.

— Cinquenta pra subir, quarenta de consumação pra ficar na whiskeria.
— Qual a diferença?
— Entra e vê, pô.

Empurrei a porta de vidro com insulfilme e subi os degraus.

O cheiro era pungente. Cerveja, uísque e ar-condicionado se misturavam num odor pesado que aumentava proporcionalmente ao número de degraus galgados. Parecia uma sala de espera. Atrás de um balcão com três caixas, quatro mocinhas uniformizadas de camisa branca e calça preta me receberam sorrindo. Me entregaram uma comanda e uma chave.

— No final do corredor.

Foi o corredor mais longo da minha vida. Num certo pedaço o teto desaparecia e virava rocha pura, como uma caverna. Descendo alguns degraus chegava-se num vestiário de futebol: bancos de madeira, escaninhos, faxineira com touca na cabeça e uniforme azul.

Procurei meu armário e abri. Dentro dele, num saco plástico, um par de Havaianas brancas e um roupão. Havia outros caras comigo naquele lugar. Uns já metidos nos roupões, outros ainda em trajes formais — ternos, etc.

Guardei a roupa no armário e vesti o roupão. Depois retornei à sala de espera e vi uma pesada porta de ferro.

— Pode entrar — disse uma das moças.

Era um salão amplo e limpo. Logo de cara havia duas loiras em biquínis neon. Elas sorriram e me fizeram carinho — sim, puta faz carinho(!). Beijar não pode, mas carinho... Parecia baile de carnaval. Os homens, suados, recebiam esfregões enquanto seguravam copos de vidro com uísque. Parei ao lado de Wilson, um negro de óculos e barba cheia. Sorridente, ele foi logo perguntando se eu era novato no negócio. Bastante, respondi. Perguntei o que ele fazia da vida.

— Advogado.
— Tem muito aqui?
— Advogado? Putz! Demais, cara! O pessoal sai do trabalho e vem direto pra cá.

Notei que ele tinha uma aliança na mão.

— Casado?
— Noivo. Caso daqui a um mês.
— E trai tua mulher?
— Rapaz, eu posso ter a grana que for, nunca vou conseguir uma mulher como essas daqui. Isso aqui é o paraíso.

A contragosto, precisei reconhecer: aquele lugar era sim o paraíso.

Sentei num sofá de couro vermelho atrás de uma mesa de aço. Fiz sinal e uma loirinha sentou do meu lado.
Dois beijinhos e:

— Tudo bem? Já conhece a casa?

Porra, pensei, isso aqui é puteiro ou o Outback?

— Não conheço. Primeira vez.
Hmmm… meu nome é Milla.
— Prazer. Mateus.
— E aí… vamos namorar?
— Oi?
— Namorar, ué. Vamos?

Meu cérebro processou a informação. Namorar. Ok.

— Claro. Quanto é?
— Trezentos e quarenta reais meia hora, trezentos e sessenta quarenta minutos.
— Isso é sério?
— Lógico.
— Porra — falei — Tem um aqui perto que é oitenta.
— Oitenta? Você acha que eu vou dar minha boceta por oitenta reais? Tchau.
— Não, espera!

Esperou.

— Senta aqui. Conversa comigo.
— Preciso ganhar dinheiro, querido.
— Dois minutos. Só isso.

Milla sentou.

— Há quanto tempo você faz programa?
— Oito meses.
— Tira quanto por semana?
— Você é jornalista?
— Aham.
— Então me paga uma bebida.
— Não. Você é bonita, daqui um minuto e meio vai ter um advogado rico te pagando trezentos e sessenta reais. Anda, tira quanto por semana?
— Um e meio… dois… às vezes, três. Mas isso é mais pro fim do ano, porque tem turista.
— E Carnaval?
— Não trabalho no Carnaval.
— Ah. Alguém sabe que você é puta?
— Tá louco?
— Alguma amiga, ué.
— Jamais. Meus pais me matam se souberem.
— Cê faz faculdade?
— Faço. Direito.
— Aonde?
— Cândido Mendes.

Realmente, só havia advogados ali. Meu tempo acabou.
Milla se levantou e, apressada, fugiu em direção a uma porta.

Irritado, decidi explorar a parte de baixo da Whiskeria. O esquema era o mesmo, mas ao invés da escuridão, a claridade revelava um restaurante espelhado, como outro qualquer. Não fosse a barra de pole dance, minha avó poderia estar ali almoçando que eu não ligaria. Pedi um misto-quente ao barman e sentei numa mesa.

— Quer que eu mande alguma garota descer? — ele perguntou.
— Pode ser.
— Alguma preferência, senhor?
— Como assim?
— Loira, morena, negra…?
— Loira.

Clarice desceu e me fez companhia durante o “jantar”. Confessou que queria largar os programas, mas que a grana era boa demais para fazê-lo por agora.

— Eu faço pra pagar a faculdade…
— Deixa eu adivinhar: Cândido Mendes?
— Isso. Como você sabe?
— Elementar.
— Quê?
— Nada. Continua.
— Então. Eu faço pra pagar a faculdade, mas tem vezes que é bom também. Os caras tratam bem, sabe? Fazem você se sentir especial.
— E o preço, você não acha caro não?
— Eu acho é pouco.

Dei uma última dentada no sanduíche e paguei a conta.

— Boa noite — ela disse e me deu um beijo na bochecha.

Antes de sair, dei uma última espiada na Whiskeria: numa mesa, seis sujeitos de paletó desabotoado e gravata frouxa se esfregavam em quatro mocinhas de biquíni. Uma delas subiu num palquinho e começou a rebolar enquanto tirava a roupa.

A moça continuou. Ficou de quatro na cara de um dos homens, que literalmente uivou. Empurrei a porta de vidro e entreguei a comanda ao segurança.

— Só seguir em frente, campeão.

Em trinta segundos eu estava de volta ao mundo real.

III. O SUBÚRBIO É O LAR DAS PUTAS

Passei os últimos cinco meses nesse universo. Devo ter entrevistado mais de quinze garotas. Meu combustível para terminar a reportagem era imaginar gente como Amanda, por exemplo, andando de shortinho pelas ruas de São Gonçalo, arrancando suspiros dos vizinhos incautos. Não havia o menor interesse em Suellen — o nome de guerra que ela usava — empinando a bunda de quatro no lençol encardido.

Aprendi a perguntar pouco e ouvir mais, deixar elas falarem o máximo possível para esgotar o tempo do programa e não rolar nenhum tipo de atuação da minha parte. Era interessante para mim explorar o lado humano daquelas pessoas. Essa exploração resultou em três verdades:

1. Ninguém sabe da vida dupla
2. Elas não se importam com o que os maridos e filhos vão pensar
3. O subúrbio é o lar das putas (frase dita por Francine, sem cerimônia)

Enquanto botava de volta o sutiã cor-de-rosa, resignada, ela explicou que para o marido seu emprego era como manicure no Werner de Ipanema.

— Minha mãe acha que eu tô lá até hoje.
— E se eles resolverem te visitar?
— Ah, meu marido ia me buscar no serviço de vez em quando, mas aí eu mandei um caô que voltava com a Beth e ele sossegou.
— E essa Beth existe?
— Porra nenhuma, mas ele acredita, então tá tudo certo.

IV. MIAMI

Quando meu tio-avô morreu, a missa de sétimo dia foi realizada na igreja Nossa Senhora de Copacabana, em frente à praça Serzedelo Correia. Me lembro até hoje de caminhar pelas calçadas esburacadas dando a mão para minha avó, chegar à esquina com a avenida-artéria do bairro e ver, colada à igreja, a fachada vermelha do Miami Club Show.

Por muitos anos, o espaço foi o único do gênero no Rio. No primeiro piso, uma locadora de filmes eróticos. No segundo, após um longo lance de escadas, o lugar onde se compra fichas por R$ 1,50, entra numa cabine, insere a ficha e observa uma bandeja de ferro se erguer, revelando o palco circular onde Leticia — a mesma que ilustra o cartaz monumental nas paredes — empina a bunda negra e rebola, sensualizando. Um minuto depois, a bandeja de metal desce e o show se encerra. Caso o cliente queira mais, pode optar por: inserir mais fichas ou então comprar um show privado. Cinco minutos por quinze reais. Decidi ver qual era a do tal show privê e dei uma nota de vinte a Rejane, a moça que tomava conta do caixa. Rejane, obesa e metida num short jeans, trabalhou no Miami a vida inteira. Ela me conduziu ao final das cabines e empurrou a porta de plástico. Na parede havia uma espécie de caça-níquel com uma entrada para moedas e seis botões numerados. Rejane enfiou dez moedas no aparelho e pressionou o número quatro.

— Divirta-se.

Na minha frente havia uma tela de acrílico vazado no topo. Atrás, um palco de carpete preto e uma cortina negra, de onde saiu Moira. Vestindo um biquíni verde-limão, ela se despiu e me mandou subir num banquinho de madeira posicionado abaixo da máquina das fichas.

Resignado, subi e baixei as calças.

— Escuta, eu sou repórter.
— Tô vendo — ela disse, os olhos fitando meu pau.
— É sério. Queria que você respondesse umas perguntas.
— Enquanto você goza?

Observei meu pênis murchar. É. Não ia dar certo. Botei as calças, desci do banquinho e disse:

— Pronto. Podemos?
— Claro. O que você quer saber?
— Há quanto tempo você tá aqui?
— Ah, eu sou a mais antiga. Tem uns cinco anos já.
— Alguém sabe?
— Não. Pra minha família eu trabalho na Centauro do Shopping Leblon. Na verdade, eu até trabalhava lá, mas a grana era curta e aqui paga melhor.
— O pagamento é correto mesmo?
— Aham. Carteira assinada e tudo.
— Cacete.
— É. Aqui é stripper, ninguém é puta. Meu filho, por exemplo, vai nascer já com enxoval e tudo pronto.

Olhei para a barriga dela.

— Filho? Você tá grávida?
— Aham.
— E não se importa dos caras te apalparem não? Com ele aí dentro?

Ela riu.

— Eu deixo eles passarem a mão em mim, não estão me metendo, então não sou puta.

Uma voz veio do corredor.

Moooiraaa!
— O tempo acabou — ela disse. — Te ajudei?
— Muito. Obrigado, viu?
— Nada.
— Ah, espera, mais uma coisa, mais uma coisa!
— Que foi, menino?
— O nome.
— Hã?
— Qual o nome da criança?
— Wallace.
— Wallace?
— É.

Moira soletrou direitinho.

— Por que esse nome? Tanto nome bonito por aí…
— Ah, eu sempre quis Wallace. Sempre achei muito bonito. Mais alguma coisa?
— Não, não.
— Beijo, amor.
— Beijo.

Há três semanas, retornei ao Miami. Rejane estava na porta. O que antes era a locadora agora servia de abrigo para quilos e quilos de entulho.

— O aluguel subiu muito — ela disse.
— E vocês vão pra onde agora?
— Madureira.
— Tem alguém lá em cima?
— Não. Já foi tudo dispensada, mas se você quiser eu posso te bater uma punhetinha. Quer?
— N-não. Obrigado.

Saí e tomei o ônibus no ponto da frente.

O aluguel subiu muito, pensei. Acabou-se a putaria.

VI. O MARIDO EM BANGU

Depois de cinco meses frequentando bordéis, o sentimento é de cumplicidade, para não dizer compaixão. Você começa a ficar viciado não na sexualidade, mas sim na atmosfera daqueles lugares. Retornei ao 106, o bordel da Uruguaiana, para uma última entrevista. Havia algo em mim, uma espécie de sexto sentido jornalístico, que me garantia ter algo espetacular esperando naquele espaço minúsculo — algo tão espetacular que merecia ficar para o final desta reportagem.

A cereja do bolo se chama Thaiane, mora numa favela famosa e me chamou a atenção logo de cara. No meio do já tradicional funk, ela estava parada, linda, absurdamente acachapante, do lado de um sujeito de boné. Chamei-a num canto e perguntei se ela estava livre.

— Posso fumar um cigarro antes?
— Claro.

Thaiane poderia ter saído de qualquer casa em Ipanema, de qualquer família rica. Seus olhos combinavam com o nariz. A bunda não era grande, mas caberia na palma da minha mão; os peitos pulavam do sutiã, naturais, sem uma cicatriz sequer. O rosto era lindo.

— Você é da Zona Sul? — fui logo perguntando.

Ela deitou na cama e abriu as pernas, revelando a depilação completa.

— Não. Sou da favela *****

Assobiei.

— Não sabia que tinha modelo por lá.
— Mudei pra lá depois que casei.

Arregalei os olhos.

— Quantos anos você tem?
— Dezoito.
— E já está casada?
— Há um ano.
— Quê isso. Engravidou?
— Não.
— Mas… você casou no papel?
— Quase. Ele foi preso antes disso.

Quase engasguei.

— Preso?
— É. Meu marido tá preso em Bangu. Vou lá visitar ele toda semana.
— E ele sabe que tu faz programa?
— Deus me livre.
— E você vai toda semana?
— Toda semana. Visita íntima, sabe?
— Aham. E como funciona o arrego?
— Ah, eles fazem uma vaquinha e dão dois mil pro policial liberar.
— Eles quem? Os presos?
— É. Cada um dá cinquenta. Todo mundo quer trepar, né, querido.
— Dezoito anos… — murmurei. — Você é mais nova que eu, garota. Teu marido foi condenado pelo quê?
— Tráfico.
— E você não foi junto?
— Que nada. Eu tava na rua quando me ligaram e falaram que ele tinha sido pego. Foi um desespero, né. Eu era de menor, fui parar na delegacia e liguei pra minha mãe, os polícia queriam que eu fosse pra casa, falaram que lá não era lugar pra mim, mas eu queria ficar perto dele.
— Mesmo sabendo que ele era bandido? Assim… sem medo de dar merda?
— Sem medo.
— Como vocês se conheceram?
— Ah, num baile. Ele gostou de mim, eu gostei dele, e aí foi.
— E sua família apoiou?
— Minha mãe no início ficou com receio, né, mas aí viu que não tinha jeito e liberou.
— Você acha que ele vai sair?
— Algum dia vai, né.
— E por que você faz programa?
— Porque eu tinha uma vida de princesa, ele me bancava tudo. Ganhava dois mil por semana com o tráfico, era dinheiro pra caralho.
— E aí você quer manter esse luxo, é isso?
— Acabou seu tempo.
— É pra manter o luxo?
— É, né. Eu sou princesa, não sou?

Thaiane me passou seu Facebook. Na foto de capa a mensagem é clara: Te Amo Deus. Nas fotos de perfil é sempre elogiada, mas parece haver uma condescendência nos comentários. Ela diz que trabalha na VASP — Vagabundos Anônimos Sustentados Pelos Pais — e não tem planos de largar a prostituição.

Todos os nomes foram alterados para preservar a identidade dos envolvidos. As histórias, contudo, são reais. A localização dos estabelecimentos também é verídica.

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