O vento

Mateus Baldi
8 min readMay 27, 2015

Por Mateus Baldi

este conto foi originalmente publicado na revista poleiro.
arte: joão brizzi.

I’m alive, vivo, muito vivo.
Caetano Veloso

Eu nunca quis ser policial, mas quando vi já tinha entrado para o BOPE e matado dois; nunca quis que minha mãe ficasse acordada até tarde vendo o jornal e só descansasse quando eu cruzasse a porta de casa sorrindo e abraçando-a dizendo, shhh, tá tudo bem, mãe, estou aqui; nunca quis largar o colégio e fumar maconha enquanto via meus amigos morrerem um a um nas mãos do tráfico; nunca quis me sentir inútil diante do asfalto; nunca quis ver que a única saída era entrar pra corporação; nunca quis estar aqui, no alto de um prédio em pleno sábado de sol, com uma mira telescópica apontando para a entrada do Banco do Brasil e o indicador direito curvado sobre o gatilho gelado.

Levanta do sofá e liga a televisão — o controle pifou. Muda os canais e vê o plantão informar (repórter com colete à prova de balas e tudo) que o sequestro à agência em Ipanema segue firme e forte. Ninguém viu o rosto do sequestrador. Só sabem que é negro e tem duas armas “grandes”. Reféns? Cinco, talvez seis, sete, vá lá. Você desliga essa merda. Só passa desgraça. Vai até a cozinha, a coluna repuxando numa dor infernal (tem sido assim desde os trinta anos, quando você caiu na pelada de domingo), e busca um copo de água no filtro. O jato sai quente. Lá fora o sol é uma amostra grátis do inferno. Você odeia sol. Quem curte sol é o Anderson, inclusive foi à praia, o vagabundo. Estudar que é bom, nada. Mas praia? Mulher? Farra? Tá lá, o pivete. Você retorna à sala e acende um cigarro Hollywood — quarenta anos fumando a mesma marca. A fumaça já empesteou a tinta das paredes, o tecido barato das cortinas, as roupas nos armários podres. Você fede a Hollywood. Você fede a sucesso.

Tarefa inglória essa de falar sozinho no topo de um prédio, as formiguinhas lá embaixo zanzando com microfone, binóculo, faixa amarela, jornal e celular. Todo mundo querendo sua fatia da desgraça e eu empunhando uma arma. Fui o terceiro melhor atirador do curso do BOPE. Andei na lama. Aturei desaforo. Invadi favela. Matei vagabundo com tiro entre os olhos. Teve muita gente que chegou no curso achando que ia virar capitão Nascimento, que ia sair matando geral. Eu, por exemplo, você veja só: esperei seis meses até tirar a vida do primeiro. Demora. Matar é fácil, difícil é saber a hora certa. Hoje em dia é um tiro pro alto e já vem direitos humanos encher o saco. Um dia ainda mato essa gente toda. É fácil falar de direitos humanos quando se mora no Leblon. É fácil botar a culpa em nós que só fazemos nosso dever. Eu mato mesmo. Atiro quantas vezes for preciso. Eu nunca quis isso, mas isso me quis, manja a diferença? Vou fazer o quê?

Acorda da soneca, para de sonhar com mulatas sambando na quadra da escola e levanta desse sofá puído pra atender o telefone rangendo no quarto. Alô, quê? O Anderson? Impossível? Tô ligando, porra, caralho, mãe, teu neto tá na praia com os amigos, não enche meu sac —

É a primeira vez que eu me vejo nessa situação. O sol é muito forte, suo em bicas. Quero descer, tomar uma água, uma ducha, fingir que tudo não passou de uma alucinação. Mas não posso. Tenho um gatilho para puxar. Sou o único que conseguiu uma boa mira. De frente para a porta da agência. Duas horas nessa merda. Além do vento, o único som que me resta tum-tum é o tum-tum coração tum-tum.

Ônibus lotado. Reza pra todo mundo. Evoca a macumba que tua mãe te ensinou no terreiro cheio de pedregulho, aquele deputado rezando junto da mãe Sinhá, reza, tua mãe disse, reza, meu filho, e agora, de pé nesse ônibus sem ar-condicionado (preto não tem direito a ar-condicionado, preto nasceu queimadão na África), você reza e pensa que deveria ter pedido para o Anderson te ajudar com a descarga, pra quê ir à praia, tomar dois ônibus, ei, esquece, ele não tá na praia, não viu o jornal, não ouviu o que tua mãe disse? Ele tá dentro de um banco fazendo uns reféns. Anderson da Silva Carvalhinho. Nome de rico. A mãe dele era rica. Deixou o moleque contigo e foi internada na Suíça. Nunca mais se viram. Você alimentou as esperanças. O moleque nasceu negro. Igual a você — não há cabelos brancos nessa cabeça quadrada. Uma refém saiu e deu as informações pra polícia. É teu filho. Carne da sua carne. Você nasceu para cuidar desse moleque, meu velho. Vai descer desse busão e invadir o cordão de isolamento, entrar na agência e tirar teu moleque dali, vai sim.

Livro o dedo do gatilho (ou vice-versa?). Tem agitação lá embaixo. Eu não queria estar aqui. Tum-tum. Bem forte, martelando o peito pra mostrar que dentro de mim há nervosismo & medo & vontade de matar, muita vontade de matar. Largo a arma na mira e chego no parapeito. Doze lances de escada, lááá embaixo todo mundo quer falar com um cara que acabou de entrar no cordão de isolamento. Ah lá… tá falando com o Comandante. Ih, caralho, o Comandante autorizou a entrada dele na agência. Volto pra mira. Meu dedo encontra conforto no gatilho. Tum-tum. Eu não queria nada disso.

Olha ao redor. Deixaram você entrar — milagre, sabe-se lá como. Anderson tá logo na frente. Tem duas pistolas apontando para nove (!) pessoas sentadas no chão de mármore, sob os caixas eletrônicos que anunciam pacotes econômicos especiais a juros baixíssimos. Você caminha lentamente. — Anderson!
Ele olha.
— PAI? MAS QUE P-
Você avança, a testa sua em bicas, a camisa está com a gola empapada.
— FICA OU EU ATIRO!
— Atira então. Atira no teu pai que te criou com amor e carinho, filho da puta! Atira!
Ele chora.
— Não era pra você ter vindo aqui, porra! Não era pr-
— Foda-se — você diz. — Foda-se. Que porra é essa, meu filho? Assaltando banco?
Anderson, teu filho, aquele que a Gatinha deixou nos teus braços antes de ir embora num blindado com os pais, te olha e chora. Dos nove reféns, sete têm algum ferimento. Anderson sentou a porrada em geral, é, é isso, teu filho, aquele rapaz gentil pra cacete, gente boa, desceu a porrada em todo mundo.
— Vamos pra casa…
— NÃO!
— Anderson…
— NÃO! CAI FORA DAQUI OU EU VOU ATIRAR!
— Anders —
— UM!
— Me escuta!
— DOIS!
— Fil-

Dois tiros. Eu não queria, mas agora quero. Quero muito atirar nesse filho da puta que roubou meu sábado. Vou estourar os miolos dele tum-tum vou foder com ele tum-tum vou virar herói da classe mérdia e sair na capa do Globo tum-tum.
Comando, aqui é Delta na mira.
Ninguém responde.
Comando, aqui é Delta na mira.
Silêncio.
Checo o fone. O microfone. Nada.
Comando? Comando? Permissão pra atirar? Delta na mira requisitando permissão para atirar. Comando?
O vento.
Comando?
E o coração.
Delta na mira!
Tum-tum.

— NÃO!
A garota tomba morta no chão, um risco vermelho enche a lataria do caixa eletrônico. Você chora.
— Cai fora daqui — Anderson manda.
— Eles vão te matar, porra!
Anderson atira novamente. Um rapaz de óculos cai inerte.
O ruído lá fora aumenta.
Você se desespera.
— CAI FORA DAQUI!
Um estalo e os policiais entram.

Está escuro, mas parece que invadiram assim mesmo. Olho com atenção. Quero tudo isso. Se não me falha a intuição, morreram três nesses últimos segundos. Massacre em agência bancária. Tudo que o Rio não precisava. A gritaria aumenta. Trago o olho de volta à mira. O rapaz sai da agência com um refém — é o sujeito que entrou minutos antes. Todo mundo que sobreviveu sai correndo para fora do cerco amarelo. Estão mirando no filho da puta. O cano da arma está na têmpora esquerda do refém. Ele vai matar.
O vento.
Tum-tum.
Comando, aqui é Delta…

— Anderson, eu sou teu pai, olha o que você vai fazer! A TV tá filmando, porra! Larga essa arma!
— CALA A BOCA!

Eu quero. Eu quero muito. Na mira — o rosto preto dele, o velho do lado. Vou virar herói amanhã de manhã. Serei promovido.
Por um segundo, só escuto os futuros aplausos.
O dedo arrasta o gatilho.
Um estalo e a bala rasga o ar em direção ao cara, que dá um passo para a esquerda.
O tiro acerta o refém e abre um rombo vermelho naquela testa suada.
Eu não quero nada disso.
Por um segundo, só escuto o vento.

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