Recusa Formal

Mateus Baldi
7 min readJul 3, 2019

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Críticos analisam Maternidade, livro de autora convidada da Flip, a partir de tendências estéticas da literatura contemporânea.

POR MATEUS BALDI & FABIANE SECCHES

MB: Lançado em março pela Companhia das Letras, Maternidade é um livro torto, mas lendo suas mais de 300 páginas fica clara a intenção de sua autora. Convidada da Flip, Sheila Heti pretende elencar os prós e os contras de engravidar aos 38 anos estabelecendo duas linhas argumentativas que serão bombardeadas impiedosamente: de um lado, a pressão social pela fertilidade feminina; de outro, o livre-arbítrio em poder ou não querer gerar uma vida. Trata-se de direitos, portanto. Sei que sou homem, portanto minha leitura surge enviesada, mas esse jeito deslocado de narrar questões majoritariamente intrínsecas a determinado recorte (ser mulher, por exemplo) me parece incontornável. Na memória afetiva, Maternidade evoca a brutalidade de Garotas Mortas, de Selva Almada, com suas cartomantes e misticismos interioranos; mas também Argonautas e sua autora, Maggie Nelson, elaborando um verdadeiro tratado queer: eu sinto vontade de abraçar essa protagonista e ser puxado pela mão até que ela me mostre o ponto — os pontos — onde quer chegar, o que, devo dizer, Sheila Heti faz com enorme sabedoria apesar do começo mambembe. De modo que esses três formam uma trilogia informal. O que você acha?

FS: Enquanto lia Maternidade, pensei muito em outras duas leituras que fiz recentemente: O segundo sexo (1949) e A mulher desiludida (1967), ambos de Simone de Beauvoir. São obras de naturezas distintas, mas que convergem do ponto de vista temático: a primeira é um tratado social que acabou se tornando uma referência importante da teoria feminista; a segunda é uma antologia literária composta por três contos com protagonistas mulheres, três mulheres destroçadas. Em Maternidade, a autora Sheila Heti se propõe a fazer uma longa digressão filosófica sobre a experiência da maternidade. Heti faz isso a partir da história de uma mulher específica, sua narradora-personagem, uma canadense de classe média, que se aproxima dos quarenta anos, vive uma relação estável com o namorado, Miles, e trabalha como escritora. É a partir das questões que assombram a vida dessa mulher em especial que as reflexões sobre a maternidade são traçadas. Na contracapa do livro de Heti, temos uma citação da escritora Miranda July que diz assim: “Um livro para quem está pensando em ter um bebê, quem teve um bebê, quem não teve um bebê, quem não quer ter um bebê, quem não sabe o que quer, mas sente a pressão do relógio mesmo assim”. O trecho também faz pensar em algo que Beauvoir escreve sobre o casamento em O segundo sexo, que seria um destino ao qual as mulheres têm sempre que se reportar, quer escolham se casar ou não. A maternidade, nesse mesmo sentido, aparece como esse destino, que é mais cultural e social do que biológico, ao qual as mulheres estão sempre tendo que se reportar, ainda que seja pelo negativo.

Mas acho que você fez uma outra relação interessante entre três autoras (Sheila Heti, Selva Amada, Maggie Nelson) que se dedicam a escrever sobre alguns dilemas importantes da mulher no mundo contemporâneo e gostaria de saber um pouco mais sobre os paralelos que observou entre essas obras. Como você vê a composição dessa trilogia informal? Fiquei curiosa especialmente quanto ao limiar dos gêneros literários.

MB: Não foi algo consciente. Digo, enquanto Maternidade se desenvolvia, aqueles capítulos curtos, muitas vezes surgindo como inserts no texto, doses de cinismo à la Lydia Davis, achei que poderia se encaixar numa categoria de romance-ensaio, mais ou menos como a Nicole Krauss fez no Floresta Escura, para citar um caso recente que me impactou muito. O problema é que, se no livro da Nicole havia uma questão judaica e um plot sobre casamento, Sheila Heti não demonstrava muita preocupação com o Miles, namorado de sua protagonista. Para ela, o cerne do livro é a própria maternidade enquanto signo, não a maternidade e o que a circunda, é um livro que se contém em si mesmo, e essa reflexão foi me angustiando até uma espécie de estalo em que eu percebi que havia sim uma correlação com outros dois livros igualmente fortes e recentes e que me suscitaram iguais entortamentos, por assim dizer: Garotas Mortas e Argonautas debatem feminicídio e teoria queer, respectivamente, a partir de uma visão com lugar de fala, cada um a seu modo, assim como a Sheila faz. O que levantou outra questão, ainda mais perturbadora e que extrapola os limites dessa trilogia, uma divagação minha comigo mesmo: por que temas espinhosos tendem a ser tratados com certo experimentalismo? A morte infantil, por exemplo, rendeu dois ótimos romances — O pai da menina morta, do Tiago Ferro, e Lincoln no Limbo, do George Saunders. Ambos também convergem pelo tabu enquanto desviam da forma, digamos, clássica do romance. São livros que parecem querer estraçalhar as convenções para expandir algo muito mais necessário — os temas delicados, que, me parece, precisam ser enfrentados com a mínima quantidade de tabus possível. São coisas da vida, e já que estamos vivos, em algum momento precisaremos enfrentá-las. Como sou homem, não quero entrar no mérito dos livros de Sheila, Maggie e Selva — e do que eles dizem — , mas no procedimento formal. Por isso essa investigação em forma de diálogo seja tão importante: na sua visão de mulher, leitora e psicanalista, por que certos temas precisam ser tratados por esse viés torto, brutal, forçando o leitor a encará-los através de uma ruptura com a velha estética em que a narrativa flui sem maiores experimentalismos?

FS: Acho que a experimentação formal permite sondar temas obscuros por novas vias, mas não é a única maneira possível de aproximação. Quanto à maternidade, por exemplo, acho que os livros de Elsa Morante e de Elena Ferrante visitam conflitos muito desconfortáveis dentro de uma estrutura romanesca mais tradicional e conseguem gerar um efeito inquietante em quem os lê. Já o trabalho de Heti muitas vezes se aproxima dos escritos filosóficos e tenta estabelecer uma relação mais analítica que me parece de natureza mais racional do que afetiva, mesmo quando ambas aparecem misturadas. Quando Heti visita lugares mais escuros, a impressão é de que ela logo acende a luz. É uma investigação defensiva. É diferente nas obras de Morante e de Ferrante, que remexem nas vísceras às sombras e talvez porque estejam menos interessadas em conclusões inequívocas, consigam resultados menos esquemáticos, mais inquietantes. Gosto de obras em que as ambiguidades não são resolvidas de maneira ordenada, mas sim sustentadas de maneira complexa até o limite. No romance de Heti, a personagem vê no trabalho de escrita uma espécie de continuação da linhagem das mulheres de sua família ou, ao menos, parece estar tentando se convencer de uma equivalência. Há um livro sendo escrito, um trabalho que busca tamponar algo de maneira quase aritmética. É um trabalho que ela classifica como arte e que a personagem aproxima da experiência da maternidade, mas não me convence. Em uma entrevista, Ferrante respondeu que não gosta de aplicar a metáfora do nascimento ao trabalho de escrita, que para isso prefere a imagem da tecelagem, fazendo uma referência à tessitura de Penélope, como podemos ler na Odisseia. Gosto do projeto de Heti, mas concordo com Ferrante: parece uma analogia mais interessante.

MB: Talvez seja isso mesmo. Maternidade, por mais que enverede por caminhos de uma deformação estética, cambaleia devido às escolhas da autora. Embora seja um bom livro, e que apesar das trezentas páginas flui bem, seu tom não se decide entre ensaio ficcional e ficção ensaística, patinando principalmente quando parece que vai ganhar força. É como um avião muito grande com um motor mediano: até sustenta o voo, mas não dá conta inteiramente do recado, ainda que sejam muito válidas as conclusões a que chega. Essa crítica também foi bastante levantada com relação ao Garotas Mortas. Argonautas, por ser autobiográfico e ter uma bibliografia de apoio incrível, consegue se destacar nessa trilogia informal de que falei. Para retomar Ferrante e Penélope, Entre as mãos, romance de Juliana Leite, vencedor dos prêmios Sesc e APCA de 2018, se vale justamente da metáfora da tessitura para construir sua narrativa. Acho que estamos numa época onde a produção literária brasileira, especificamente, é mais experimental do que nunca, e provavelmente, arrisco dizer, esse tipo de periculosidade costuma funcionar melhor aqui do que entre os gringos, como se tivéssemos a manha para deslizar e ressignificar a brutalidade — não consigo ver toda uma tradição estética para chegar à “estrutura romanesca mais tradicional” como menos do que brutalidade. Todo formato, desconfio, carrega em si algo de bruto, castrador. Há algo de recusa do cartesiano que talvez seja o que estamos verdadeiramente contrapondo neste diálogo, uma força que deseja arriscar um avião inteiro num motor meia-boca em nome de uma libertação. E se é a libertação que a protagonista de Maternidade busca — para engravidar ou não com tranquilidade –, é nessa recusa estética que o leitor precisa se escorar se quiser compreender tanto a luta literária de Sheila Heti como também as de Elsa Morante, Maggie Nelson, Selva Almada e Elena Ferrante.

Mateus Baldi é escritor e crítico literário. Em 2016, fundou a Resenha de Bolso, plataforma de críticas de literatura contemporânea.

Fabiane Secches é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP.

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